segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Diários de Bicicleta - Capítulo 7 - Sonho de Alemão


Onze do onze. Décimo primeiro dia do décimo primeiro mês. Um ,um, um ,um. Dois números primos. Ontem na minha aula, tinha onze alunos (maior turma que já tive). O professor, antes de um exercício, contou a turma e disse: “Onze... número ruim.” Ruim nada! Número mágico. Um daqueles poucos que nenhum outro número divide. Aqui na Austrália descobri que hoje também é conhecido como Remembrance Day. E, numa piada da televisão, um cara disse que quase tinha se esquecido. Muita gente pode achar essa piada sem graça, mas eu gosto. Além de mim, só tenho certeza de uma outra pessoa que também vai gostar. Exatamente a pessoa que me ensinou (com seus genes e nossa convivência) a pensar de uma maneira que faz essa piada ser engraçada. Aprendi a gostar desses jogos de palavras. Esquecer o dia da lembrança. Não apenas ouvir uma palavra, mas entrar no seu significado. Procurar todos os seus significados. Desmontar a palavra em outras (tive que pensar menos de 30 segundos pra criar essa obra prima: “Boa parte das ex quer ser de novo a atual.” Pegou? Ex quer ser/Esquecer). Ou apenas ficar brincando de jogar com os algarismos de um número qualquer que aparece pela frente. Assim como eu fiz com a data de hoje, que, não por acaso, é o aniversário desse que me ensinou, nada mais, nada menos, do que como pensar.

Alemão. Se eu tivesse que definir meu vô em uma palavra seria essa. Palavra que significa uma nacionalidade. Mas que também pode trazer apenas a idéia de alguém com cabelos loiros. Cabelos loiros que já não tenho mais há algum tempo. Mas mesmo assim, dos poucos apelidos que tive na vida, Alemão foi o único que sempre me acompanhou. E que, por mais uma dessas coincidências da vida, é como os brasileiros me chama aqui na Austrália. Só me dei conta de que meu apelido também significava a nacionalidade dos meus antepassados quando fui traduzir meu apelido pra uma guria que conheci aqui. Quer saber de onde ela era? Uma legítima alemã. “How do they call you?” E depois de pensar um pouco respondi: “German.” Só então caiu a ficha. E já caíram duas fichas ao mesmo tempo. Além de nacionalidade e apelido, alemão também é uma língua. Uma língua que apesar de ter sempre vivido ao lado de pessoas que falavam alemão, só fui aprender uns meses antes de vir pra cá. Só aprendi por causa do suporte motivacional e financeiro de quem? Meu vô! Posso não ter aprendido muito, mas logo depois de traduzir meu apelido, soltei um muito natural: “Ich komme aus Brazil.” E no mesmo instante descobri uma tática que me permitiu ganhar toda a simpatia e alguns sorrisos de todas as alemãs que conheci desde então (e olha que não formam poucas, sem contar que também ajuda com as suíças). Agora, voltando ao começo desse parágrafo, além de língua, apelido e nacionalidade, alemão pode ser usado como um adjetivo. Aquele que possui as características tidas como tradicionais da Alemanha. E eu usaria apenas esse adjetivo para descrever meu vô porque foi assim que meu professor me descreveu uns dias atrás. Aquele mesmo professor que reclamou do onze (que só pra não deixar nenhuma coincidência de lado) e que apesar de ser inglês, também fala alemão. Me descreveu assim, mesmo sabendo que sou brasileiro, depois de ler um texto que eu escrevi num exercício de aula. Disse que eu tinha usado meu lado alemão para organizar minhas idéias da maneira mais didática possível. Me enchi de orgulho! Por ver que estava conseguindo fazer outras pessoas perceberem um jeito meu de fazer as coisas. Um jeito meu que aprendi com meu vô. Meu vô alemão.

Esse “jeito alemão de ser” deve parecer perda de tempo para muita gente, mas pra mim não. Essa mania de querer encontrar todos os lados, todas as partes, todas as combinações de qualquer coisa que apareça, exercita o raciocínio. Ajuda a encontrar diferentes perspectivas. Mostra possibilidades que nunca se poderia ver numa análise mais superficial. Permite uma organização incrível através de um metodismo rigoroso. Busca sempre o melhor resultado através do perfeccionismo. E a combinação disso tudo leva ao melhor de tudo que é a manutenção de um foco constante. Isso é o que traduz, pra mim, o adjetivo alemão. Isso que explica o que aprendo com meu vô.

Agora que já expliquei tudo isso, posso finalmente chegar a razão de eu estar escrevendo isso. Hoje é aniversário do meu vô. Uma das pessoas que mais pesou enquanto decidia se viajaria ou não. Agora pago o preço da decisão que tomei. Não posso estar com ele nesse dia e dar um abraço nele. Mas ele também não pode estar comigo e receber meu abraço. E paga junto comigo o preço da mina decisão. Já faz alguns dias que venho pensando no aniversário dele. Mas só hoje, um pouco depois da meia noite (quando começou o aniversário dele aqui), descobri o melhor presente que posso dar pra ele.



Vô!

Queria poder estar contigo pelo menos no dia de hoje, mas estou do outro lado do mundo. Da última vez que nos vimos, eu não sabia se estava dando o rumo certo pra minha vida, mas hoje, acho que consigo entender melhor as coisas que tenho pela frente. E é isso que vou tentar te passar aqui. Pensando um pouco (ou melhor..., muito!) antes de escrever me vieram na cabeça algumas coisas que aprendi com minha família. Assim como expliquei acima o que acho que aprendi contigo, me vieram outras coisas que aprendi com outras pessoas. Se tu me deu o foco para buscar meus objetivos com determinação, acho que minha vó (paterna) me deu aquela lição sobre o valor da vida que falei no texto anterior. Com minha vó materna, aprendi muito sobre humildade e gostar de servir aos outros. Meu vô materno me passou o gosto por fazer as coisas com minhas próprias mãos (já que até a casa dele foi ele quem fez). Minha mãe construiu a base de quem eu sou me dando meu caráter e meu senso de justiça. Mas foi o que meu pai me ensinou que me faz estar escrevendo essa carta e não estar te dando um abraço no dia de hoje. Meu pai, teu filho. A pessoa que eu mais cobrei nessa vida. Sempre fui muito exigente com ele porque eu combino um pouco do teu jeito alemão com a lição que ele me ensinou. Quando eu era criança, sentado no colo dele, ouvi ele me dizer que ia morar do outro lado do mundo (na realidade não tanto quanto eu...) é que por isso nós passaríamos dois anos separados. Tudo isso por uma única razão: ele queria deixar pros filhos dele um mundo melhor do que o que ele recebeu do pai dele. Não que tu tenha deixado algo de ruim pra ele, pelo contrário. Mas apenas porque esse é o melhor objetivo que nosso jeito alemão pode buscar. Tu me ensinou o jeito. Ele me deu a idéia. Agora tenho que conciliar os dois.

Tu deve saber melhor do que eu, que na minha idade, mesmo com todo meu esforço de alemão, eu não tenho como programar tudo que eu vou viver nessa vida. Planejar um roteiro para a vida serve por um tempo, mas com o tempo algumas coisas mudam. Por isso, planos a longo prazo eu não faço com a cabeça, prefiro fazer com o coração. E aqui cabe perfeitamente aquele sonho idealista que ganhei do meu pai. Quero mudar o mundo! Deixar um mundo melhor pros meus filhos. Pronto. Objetivo a longo prazo determinado. O sonho voltou. Agora, eu que volte pro curto prazo. Tenho que planejar. Tenho que sonhar um sonho. Mas sonhando como um alemão.

Sair do Brasil foi difícil porque era tão fácil simplesmente seguir no Direito e poder logo me sentir reconhecido profissionalmente. Senti algumas vezes de ti a vontade de me dizer pra seguir no caminho que eu já estava. Sentia no teu olhar que tu tinha medo de eu estar desperdiçando meu potencial. Se eu seguisse ali, logo teria minha estabilidade financeira e poderia construir uma base para quando tivesse meu filho. Mas eu não fiquei e, mesmo descontente por um lado, tu aceitou mina decisão. Acho que, no fundo, fizemos isso porque sabemos que não era apenas sobre bens materiais que meu pai estava falando quando falava sobre um mundo melhor. E é esse algo mais que eu estou em busca.

O caráter e o sentido de justiça da minha mãe me fizeram seguir em fiel aos meus sonhos. A lição de vida da minha vó me deu energia pra viver mais esse desafio. A humildade e o gosto por servir de minha outra vó me permitem encarar com alegria e satisfação os trabalhos que tenho que fazer pra chegar onde quero. E meu vô me deixa contente de me ver construindo cada tijolo dos meus objetivos com minhas próprias mãos. Assim, apesar de distante, vivo com todos vocês cada dia da minha vida.

Vida que mudou muito. Que não para de mudar. Mas que ta pegando o hábito de mudar pra melhor. A única coisa ruim é uma das melhores. Cada dia tenho mais certeza de que achei o meu lugar. Depois de toda a fase de instabilidade e transição na chegada, as coisas começam realmente a tomar forma. Esses últimos dias então, têm sido especiais. Tudo começou mesmo nesse fim de semana. Saí sábado pra ir numa festa na City, pois não agüentava mais as noites só com brasileiras aqui de Manly. Fui eu, o Tatinha (primo do Élido) e o Juliano (um paulista que agora também mora comigo). A noite tava muito boa e o Juliano comentou sobre a diferença que faz o fato de a gente poder se comunicar em português, inglês e espanhol, além de poder soltar umas frases em italiano, francês, grego, húngaro e começando a sair umas palavras em japonês e chinês, além, é claro, do alemão. Entramos em três bares e falamos com muita gente na rua, especialmente um grupo de seis alemãs. Apesar de termos chegado de manhã em casa, eu e o Juliano fomos pra praia no começo da tarde e “caminhando como quem não quer nada” conhecemos duas suíças, sendo que uma delas estava de aniversário (dá pra chamar isso de coincidência?!!!). Compramos umas cervejas e fomos pra uma prainha com pouca gente aqui perto chamada Shelly Beach. Bom, não vou entrar em detalhes aqui, mas pode ter certeza de que temos umas estórias pra contar. Assim que eu voltei pra casa, tive a confirmação de que eu consegui a vaga no trabalho de um vizinho meu que ta indo pro Brasil e assim vou poder trabalhar fixo com o mesmo chefe de segunda a sexta. Onde, em dois meses, dá pra juntar toda a grana que eu precisaria ter só em março. Além disso, também tinha outros três empregos pro mesmo dia, mas eu não tinha como ir porque já estaria em outro. Assim, consegui trabalho não só pra mim, mas também pra três amigos meus. Fui trabalhar. No caminho, acompanhava no celular o jogo do Grêmio com o Palmeiras. Eu já estava feliz com o empate. Comecei a trabalhar. Uma obra de três andares imunda. Toda bagunçada. Depois de uma hora recebi o meu primeiro elogio. Fui ver o resultado final do jogo. Vitória do nosso time que por sinal, também foi fundado por alemães. Voltei a trabalhar mais motivado ainda. No intervalo, mais um elogio. Coloquei em prático o metodismo, a perfeição e a organização alemã ao ponto de fazer os carpinteiros pararem pra dar risada de tão diferente que estava ficando o lugar. No final do dia mais um parabéns, a garantia de emprego por muito tempo (talvez mais que os dois meses que meu vizinho vai passar no Brasil). Fui pra aula e descobri com o professor que fala alemão que um mestrado por aqui sai menos de 40 mil dólares. Isso se eu ainda não tiver residência que pode dar um desconto de 75%. Então decidi que, na pior das hipóteses, vou pagando um curso de business que é bem barato por aqui, só pra poder ter o visto e trabalhar até juntar essa grana. Dá pra fazer isso em dois ou três anos, que também é o tempo que leva pra sair a residência. Voltei pra casa com isso definido na cabeça. Arrumei minas coisas pra trabalhar no outro dia, mas antes de dormir começou um documentário na televisão sobre os Últimos dias de Yasser Arafat. Independentemente do julgamento que eu possa fazer sobre ele e suas idéias, me interessei por dois pontos abordados no filme. Um sobre o sonho da paz no Oriente Médio. Outro sobre a determinação de Arafat com seus ideais, acreditando no retorno dos palestinos à Terra Santa, mesmo quando já sabia que morreria em breve. Pensando sobre essas coisas, consegui pela primeira vez visualizar uma seqüência para meus planos que junta tudo que eu sempre quis fazer. Um mestrado em História aqui na Austrália pra construir uma boa base que sirva de fundamento para um doutorado na Europa em Relações Internacionais. Sei que ainda são só planos, mas é muito bom poder visualizar uma coisa mais concreta pela frente. Depois de muito tempo, poder dizer que agora tenho um plano. E pra compensar a alta dose de idealismo que esse plano tem, tenho que me esforçar no meu lado alemão. Foco. Determinação. Atitude. Por isso tive que assistir o filme ate tarde. Por isso, abusei do tarde e virei a noite escrevendo isso aqui, mas vou estar no trabalho em ponto amanhã. Tive que fazer isso porque afinal, estou praticando aqui o que quero como minha profissão: expor minhas idéias. Ainda mais escrevendo, que acredito ser minha maior habilidade. E muito dessa confiança que tenho em mim, tenho graças a ti. Teus elogios e tuas críticas a todas as coisas que já escrevi e te mostrei. Porque é só isso que quero: expor minhas idéias. Não quero ser seguindo e idolatrado como Arafat pelo seu povo. Pelo contrário. Não gosto disso. Quero levar minha vida quieto, em paz. Mas mesmo assim, quero mudar o mundo. Sem pressa, com calma. Mas com foco e determinação. E hoje sei que estou no caminho certo porque esse sou eu. Aqui é meu lugar. Cada dia descubro uma coisa nova que me encanta nessa cidade. É tudo do jeito que eu gosto. Continuo amando minha terra e por isso falo que me preocupo com o mundo. Quero que ele seja melhor em todos os lugares porque não sei onde meu filho vai querer morar. E como nessa família tem muito viajante, é bom se prevenir. Cuida de cada cantinho. Fazer o meu trabalho. Do jeito alemão. Dar meu passo. Do meu jeito. Combinando teu passo com o do meu pai, mas também criando o meu. Porque um dia vou ter que ensinar alguma coisa pro meu filho. E é sempre uma nova lição. E assim como Arafat não viu os palestinos de volta Terra Santa, talvez eu não veja o mundo mudado pra melhor. Mas o que importa é eu tentar, porque, assim como vocês talvez tenham me dado a base pra conseguir, talvez eu tenha que deixar a base pro meu filho mudá-lo. Seguindo o teu passo, seguindo o passo do meu pai, seguindo o meu passo e dando o passo dele. Fazendo de todos os nossos passos uma caminhada. Dando sentido a todas nossas vidas. Fazendo nós estarmos sempre vivos, sempre vivendo, mesmo que na vida de outra pessoa. Assim como tu ta agora, aqui comigo. Me ensinando, me orientando, me estimulando. Vivendo junto comigo esse sonho de Alemão.

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