domingo, 12 de outubro de 2008

Diários de Bicicleta - Capítulo 6



Depois de muitos planos. Depois de muita demora. Depois de tomar uma decisão difícil. Depois de enfrentar todas as dificuldades de uma partida. Depois de correr até a beirada da ponte. Depois de pular, me atirar ao ar e voar. Depois de tudo isso... um mergulho. Mergulho profundo. Entrada em um novo mundo. Nova realidade. Como a diferença entre voar e mergulhar. Ar e água. Aquele mergulho onde você já sabe que conseguiu pular, mas ainda não pode gritar para comemorar. Não pode encher os pulmões com aquele ar renovado depois de tanta adrenalina. Ainda falta subir à superfície. Relaxar o corpo e deixar a água me levar pra cima. Lentamente, tudo vai pro seu lugar. A força do equilíbrio. O salto foi dado. A viagem foi feita. A transição realizada. Agora chega a fase de construção. Aprendizagem e prática. Novas idéias, novas realizações.

A despedida de Porto Alegre foi difícil, como sempre. Desde pequeno sou acostumado com despedidas. Pais separados. Avós, tios e primos morando em outra cidade. Pai e irmãos morando em outro estado, quando não em outro país. Eu indo de lá pra cá. Eu morando sozinho desde cedo. Eu viajando e morando fora. Aeroportos e rodoviárias. Malas e check-ins atrasados. Quantos tchaus... Algumas vezes apenas por poucos dias. Outras vezes por alguns meses ou até anos. Nunca gostei. Sempre quis levar todos comigo para todos os lados. Queria pegar meus contatos do MSN ou minha lista de e-mails e poder trazer cada um pra perto de mim sempre que quisesse. Mas mesmo toda essa tecnologia não me permite uma coisa dessas. Tudo tem um preço. O que se ganha por um lado, se perde por outro. Assim são as coisas. Não que eu aceite isso assim de graça. Sempre brigo contra isso com todas minhas forças. Tento ter tudo ao mesmo tempo. Mas tenho que aceitar certos limites que a vida nos impõe. Assim, paguei o preço. Me despedi mais uma vez. Dessa vez com um peso bem maior. Por ser uma decisão a longo prazo. Mudança de rumo. Mudança pra longe. Que despedida sofrida! Quanto peso não carregava nas costas enquanto caminhava para a sala de embarque. Quanta saudade daqueles rostos que eu acabara de ver. Quanta vontade de voltar e dar mais um abraço em cada um. Conversar só um pouquinho mais. Guardar um pouco mais dessa lembrança. Essa companhia gostosa que só nossa família nos dá. Sentimento de conforto que sei que não terei por muito tempo. Nada substitui. Assim eu fui... Caminhando no sentido contrário ao que o meu coração me mandava. Saindo de perto das pessoas mais importantes da minha vida. Saindo da cidade da minha vida. Deixando meus amigos. Deixando minha casa.

No avião pra Buenos Aires, sentei ao lado de um casal de mais idade. Passei o tempo todo calado, apenas me comunicando com sorrisos. Quase no final do vôo, o senhor me perguntou pra onde eu ia. Expliquei que ia pra Austrália estudar inglês para depois tentar conseguir residência. Ele me ouviu com atenção e comentou sobre uns parentes que moravam fora também e voltei a ficar calado. Eu não tinha convicção nenhuma para convencer aquele senhor de que o que eu estava fazendo era a coisa certa pra mim. Eu só queria ficar passando na minha cabeça a imagem de cada um que eu estava deixando pra trás. Puxando a lembrança do último abraço e do último olhar. Engasgado na garganta um grito que queria dizer foda-se tudo, vou esquecer essa idéia maluca e ficar aqui no meu canto. Mas como não me contento apenas com um canto, segui em busca de uma coisa maior que nem eu sei o que pode ser. Ouvindo uma intuição que não sei de onde vem, fui seguindo meu caminho. Aquele que eu realmente acho que devo seguir e não apenas o caminho mais curto ou fácil de percorrer. Seguindo essa intuição, desisti da idéia de pedir pra descer do avião antes de decolar. E consegui me controlar pra não pedir pra voltar enquanto via Porto Alegre ficando pequena numa linda sexta-feira de sol. Como eu amo essa cidade...
Mas também tenho um carinho especial por nossa América Latina. Nossos vizinhos que falam espanhol. Aqueles que podem nos mostrar como pessoas com histórias tão semelhantes podem ser tão diferentes. Ao mesmo tempo que nos mostram nossa semelhança na identidade latina. Uma realidade diferente, mas em cima da mesma terra. Em volta das mesmas águas. Com muitos problemas em comum, mas com muitas qualidades que não se encontram por aí. Assim cheguei em Buenos Aires. Antes de descer do avião, o senhor que estava do meu lado me olhou com um sorriso estimulante e me desejou boa sorte no meu novo caminho. Esse pequeno gesto conseguiu despertar em mim uma energia enorme, uma grande vontade de seguir em frente e conseguir o que quero, apesar de tudo.

Mochila nas costas e vamo pro mundo!

Do aeroporto peguei um ônibus até o centro de Buenos Aires. Ia ficar no apartamento do meu amigo-irmão Fábio que está trabalhando e morando lá por uns tempos. Ele me explicou como chegar na casa dele de taxi ou de ônibus e metrô. Por qual que eu fui? Pela melhor é claro! Desci do ônibus carregando um mochilão enorme nas costas e outra mochila pequena na frente. Sai caminhando no meio das pessoas que voltavam pro trabalho pra última jornada antes do final de semana. Cheguei num quiosque dentro de uma estação de ônibus com um espanhol cretino, comprei uma coca-cola pra tentar uma informação com mais boa vontade, mas a vendedora não me entendeu direito e um senhor que comia um pastel no balcão me indicou como chegar na estação de metrô. A primeira linha foi tranqüila, mas depois tive que fazer uma conexão e trocar de trem. Passei uns vinte minutos espremido com minhas mochilas no meio de muita gente. Toda vez que o trem partia de uma estação, o peso da mochila me puxava pra trás e eu tinha que me segurar com força pra não derrubar as pessoas atrás de mim. Mas assim eu fui. Desci na estação e caminhei até o prédio. Passei dias de muito conforto, boa companhia e programas diferentes daqueles que qualquer turista faz. Tomamos uma cerveja antes da final do futebol olímpico, onde vi os argentinos comemorar o ouro. Fomos até uma cidade perto e fizemos um passeio de escuna. Jantamos numa churrascaria em Puerto Madero e passeamos no parque depois de comer num café o desjejum de domingo. Arruma a mala de novo. Mais uma despedida. Mais amigos ficando pra trás. Mas um casal especial. Fábio e Adriana. O único exemplo de relacionamento que eu admiro realmente. Conheço os dois desde que eles começaram a namorar e fui padrinho de casamento. Foram as últimas pessoas que vi antes de encarar essa nova jornada. Amigos de verdade. Amigos de tempo. Uma das coisas mais preciosas e mais difíceis de se encontrar. Pessoas capazes de me dar exatamente o que eu precisava. Carinho e confiança. Um sentimento bom vendo duas pessoas que vivem juntas apesar da distância. Palavras de quem me conhece desde os tempos de colégio e que sabem de muita coisa que já vivi. Um olhar profundo dentro do olho dizendo que confiavam em mim e nos meus planos. Amigos de verdade! Assim fui pro aeroporto de taxi (porque gosto de um pouco de luxo também). Liguei pra minha família e fui pro embarque. Fui passando pelos corredores até que apareceu um grupo de aeromoças na minha frente. Fui caminhando atrás delas e passei por uns guichês. Quando olho pra trás, vi que tinha um cara sentado num dos guichês. Voltei e perguntei pra ele: “Eu tenho que passar por aqui? To indo pro avião.” Ele se assustou e disse que sim, mas que achou que eu estava com as aeromoças. Ficamos rindo e conversando, porque nós dois nos perdemos olhando pra elas e quase que eu saio da Argentina sem passar na imigração. Essas aeromoças... Depois da conversa e do carimbo no passaporte, saí do nosso continente ouvindo do meu amigo da imigração a melhor despedida que esses Diários de Bicicleta poderiam ter. Parti para encarar o mundo guardando na memória aquele: “Tchau Che!”.

Todo esse tempo eu estava mais ou menos presente. Eu fazia as coisas, mas minha cabeça estava em transe. Não dava pra se concentrar muito numa idéia porque a cabeça girava. Onde eu estava? O que eu estava deixando? Pra onde eu estava indo? Todas perguntas sem resposta. Mas que não saiam da cabeça. Me deixando como um motorista em uma estrada. Que passa pelos lugares, mas olha pra frente, prestando atenção na estrada. No avião foi muito estranho. Poltronas desconfortáveis. Um casal que de australianos que não se comunicava do meu lado. Sorte que tinha uma poltrona vazia entre eu e eles onde eu podia pendurar uma perna quando cansava da mesma posição. Passei muito tempo no Brasil pensando nessa viagem. Passar por cima do Pacífico inteiro. Aquela desgraça do seriado Lost na minha cabeça (onde um vôo da Austrália cai numa ilha) me fazendo pensar que, na vida real, acho que o seriado acabava na queda do avião com a morte de todos. A Aerolineas quase falida me colocou um papel escrito “Em Manutenção” na saída de emergência que ficava do meu lado e nas decolagens e aterrissagens a porta fazia muito barulho. Um grupo de brasileiros ocupava as últimas fileiras do avião, mas eu preferi ficar na minha, sem me comunicar. Aquele momento era meu e eu queria aproveitar ele ao máximo. Assim cruzei um oceano. Passei mais da metade de um dia dentro de um avião. Não vivi o dia 25 de agosto de 2008 (por causa do fuso horário). E cheguei em Sydney as oito da manhã do dia 26 de agosto. Preenchi uns papéis e entrei na fila pra imigração. Aqui eles têm um sistema de quarentena onde não pode entrar no país com sementes, comidas, derivados de madeira, e várias outras coisas que não me lembro. Tem que colocar tudo fora. Depois de enfrentar uma longa fila pra apresentar o passaporte, quando chegou minha vez, veio um funcionário de longe fazendo sinal pra parar tudo. Me pediu pra dar uns passos pra trás porque viria um policial com um cachorro. Já pensei que iam me prender antes mesmo de eu chegar. Mas então ele pediu pra toda a fila ir pra trás pra passarem com o cachorro. Depois de levar uma cheirada do cão-policial, apresentei meu passaporte, peguei minha mala e fui desfilar em Sydney com a camiseta do Imortal Tricolor. Apresentar pra eles o líder do Campeonato Brasileiro.

Ainda no aeroporto troquei um pouco do meu dinheiro e fui descobrir como ir pro centro da cidade procurar um albergue. Comprei um passe de trem e fui pra estação de Kings Cross. Caminhei meia quadra e achei o albergue que eu tinha escolhido pela internet. Mas logo na frente já vi um letreiro que dizia que não tinham vagas. Caminhei mais pela rua, onde tinha vários albergues. Escolhi um numa rua do lado, tomei um banho e deixei minhas coisas. Saí pra conhecer a cidade. Caminhei até um parque que fica na beira do mar, na baía de Sydney (com águas calmas como se fosse um lago, mas na verdade é o mar que entra pela cidade). Caminhei por um calçadão onde muitas pessoas corriam e faziam ginástica em plena tarde de terça-feira. Me deitei na grama quando achei um bom ponto pra ficar observando o Opera House e a Harbour Bridge. Uma incrível combinação da organização européia com o sol brasileiro e de belezas naturais com construções impressionantes. Cidade grande com clima de férias na praia. Tecnologia com saúde. Que cidade!

Passei a tarde caminhando e depois de desistir de ir a pé (o que descobri depois que levaria uns dois dias), peguei um ônibus até Manly, que é um bairro que fica no norte da cidade. Encontrei o Tatinha, primo do Élido, outro amigo-irmão que eu tenho. Passei um tempo com ele no albergue que ele estava. Conheci o pessoal do quarto dele. O Marcelo (Jegue), brasileiro de Porto Alegre, que eu já conhecia da PUC e o Christopher, um australiano que trabalha como mecânico. Decidi que ia ficar com eles no quarto que tinha mais uma vaga. Voltei pro meu albergue no centro da cidade, encontrei o casal de alemães que estavam no meu quarto, mas estava tão cansado que dei um oi e fui dormir. Acordei no outro dia e me mudei pro albergue de Manly.

Passei um mês morando nesse albergue. Não aproveitei muito do que ele tinha pra lazer porque tava sempre correndo, cheio de coisas pra resolver, mas todo dia tinha uma função diferente. Tinha dia do churrasco, dia do vinho com queijo, dia da comida mexicana, dia do filme, dia do campeonato de sinuca, cada dia tinha uma desculpa pra se fazer uma festa e juntar todo mundo no pátio do albergue bebendo, comendo e conversando. Mas quase (confesso que foi quase) todo tempo eu me concentrei nas coisas que tinha que fazer pra me ajeitar por aqui. Tive que conseguir emprego pra começar a entrar dinheiro antes que acabasse o pouco que eu tinha. Ao mesmo tempo tinha que me dedicar muito em encontrar um lugar pra morar, porque no albergue tinha muita bagunça e era difícil de guardar comidas mais baratas de supermercado pra fazer lá mesmo porque tinha muita gente e a cozinha era um caos. Já fiquei em muito lugar pior, mas pra se sentir em casa não dava. Trabalhei meu primeiro dia como ajudante de jardineiro, quem me conseguiu o trabalho foi o meu amigo André (que conheci no Brasil através do Fábio) que tá morando aqui também. Mas tinha que atravessar a cidade pra trabalhar de manhã cedo. Nem se eu pegasse o primeiro ônibus eu chegava em tempo. Então comecei a trabalhar em obra. O Tatinha me indicou pra um Bricklayer (que é quem é responsável por levantar as paredes de uma obra). Fiz muito cimento e carreguei uma infinidade de tijolos. Oito horas numa correria frenética. “Mais cimento! Agora mais tijolo! Ainda tá no tijolo? Já acabou o cimento!” E assim vai... Conheci gente que trabalha faz mais de dois anos em várias obras daqui e diz que esse chefe que eu peguei no meu segundo dia de trabalho é disparado o serviço mais pesado que eles já fizeram. Meu chefe que se chama Troy, é mais conhecido pelo apelido de Destroy. Na metade da primeira manhã, todos os músculos do meu braço pulsavam sozinhos sem parar. Meu chefe disse que era normal e que era só tomar magnésio que ajudava. Mas como a opção de desistir não estava na minha lista, segui em frente e sem eu nem notar, os músculos pararam de se mexer. A dor foi sumindo aos poucos. O dia foi passando. E depois de dois dias de trabalho, meu pagamento me fez entender que aquilo tudo valia a pena. E assim fui trabalhando. Dois ou três dias por semana que já me pagavam as contas de toda semana. Faltava achar meu lugar pra morar.

Começaram as aulas. Tenho que pegar uma balsa e atravessar a cidade duas vezes todo dia, mas aproveito muito o visual. Semana passada enquanto eu atravessava a baía, uma baleia batia a calda na água levantando água bem na saída pro mar aberto. Um barco de observação de baleias estava bem perto dela, enquanto eu, de longe, ia do trabalho pra escola. Na volta pra casa, quase sempre vem junto um bando de Sea-Eagles (que acho que é um tipo de gaivota) voando em volta da balsa. Dos seis níveis que tem o curso eu entrei no quarto. Sentei na sala e a turma fazia um teste sobre a matéria da semana passada. Terminei o teste de quatro páginas enquanto a turma estava na metade da primeira página. O professor pegou pra corrigir e no final me pediu pra acompanhar ele porque eu tinha que ficar num nível acima. Então passei pro quinto nível. Meu atual professor me indicou pra passar pro último nível, mas preferi continuar nesse porque no último só se tem conversação, mas no que eu estou ainda se aprende gramática (que é o meu ponto fraco). Minha turma tem um professor nas segundas e terças e outro nos outros dias. Os dois são bem engraçados e não negam um convite pra transferir a aula pra um pub. Vários colombianos, peruanos, filipinos, koreanos, indonesianos, pessoas que vieram de Laos (não sei como se chamam)e claro, brasileiros (apesar de que na minha aula só tinha um que já saiu da escola, mas que ficou meu amigo porque voltávamos juntos até Manly). As aulas são muito engraçadas, onde eu aprendo um pouco de inglês e muito sobre diferentes culturas. Essa troca de experiências é incrível. Pessoas muito diferentes de nós, com mentalidades muito diferentes. Mas me dou bem com todos. Todos sempre querem colar de mim e fazer os trabalhos comigo porque dizem que eu sei muito, apesar de eu achar que tem alguns que sabem bem mais do que eu. Em homenagem ao meu atacante Perea, minhas relações com a Colômbia estão se intensificando cada vez mais, uma vez que a mulher latina ainda me encanta de uma maneira especial e as colombianas parecem superar a qualidade brasileira na minha escola (para minha grata surpresa).

Mas ainda faltava um lugar pra chamar de lar. Passei todo esse mês no albergue pesquisando. Queria encontrar um lugar especial. Escolhi primeiro entre as três opções de áreas pra se morar. Bondi, praia do sul, mais urbanizada e se pode usar metrô pra ir até o centro. O centro, que chamam de City, onde fica minha escola, tem aquele parque e vários pontos turísticos e onde ficam os prédios altos da cidade. Ou Manly, praia do norte, mais ritmo de cidade pequena e não tem metrô pra ir pro centro, tem que ser ônibus ou balsa (que aqui eles chamam de Ferry). Escolhi Manly porque no norte é onde tem mais emprego de pedreiro (que é o trabalho que melhor paga por aqui) e pagam mais do que pros pedreiros da City ou de Bondi. O Tatinha que tava me conseguindo os contatos de trabalho também morava em Manly e me ajudou e ainda me ajuda muito por aqui. Depois de decidir por Manly, sentei um dia na praia e fiquei olhando a paisagem, tentando imaginar qual seria o lugar que eu mais gostaria de morar. Me chamou a atenção um morro que fica no canto norte da praia. Descobri que se chamava Queenscliff e passei a prestar mais atenção nos anúncios de casas por lá. Encontrei um apartamento e uma casa. Fui ver o apartamento primeiro. Cento e vinte dólares por semana dividindo quarto, tinha uma sacadinha de frente pro prédio do lado, mas com umas árvores bonitas na frente. Só achei meio bagunçada demais e meio longe do píer que se pega Ferry pra City. Como tive que esperar meia hora pra ir ver a casa, fiquei caminhando pelas ruas desse morro. Cheio de casas bonitas. Um clima muito de praia. Descobri uma rua de onde desciam umas escadas até uma prainha pequena que fica do lado norte do morro chamada Freshwater. Tem uma pracinha toda ajeitada com bancos pra se sentar e apreciar uma vista incrível dessa praia. Caminhei um pouco mais e encontrei uma rua sem saída que tinha no final um mirante com uma vista que vai muito longe pra dentro do mar. Na direção da minha terra natal. Já estava quase na hora de ver a casa e fui voltando. Meia quadra depois desse mirante, passei por um prédio com umas sacadas que tinham uma vista incrível pras praias de Queenscliff (que fica em baixo do lado sul do morro com o mesmo nome), Manly (que é a principal praia do norte de Sydney, onde tem a maior concentração de pessoas na praia e onde ficam algumas das festas que as pessoas mais vão por aqui) e Shelly Beach (que fica no canto sul de Manly e é uma prainha pequena com lugar pra fazer churrasco, mas que eu ainda não conheci, apesar de ter ouvido falar que é uma das mais bonitas daqui). Numa dessas sacadas vi umas pessoas conversando em português e pensei que deviam estar a muito tempo aqui em Sydney pra terem conseguido chegar num lugar tão bom. A melhor vista que eu já tinha visto aqui e ainda não muito longe da parte principal de Manly. Podendo ir pra praia de Freshwater ou de Queenscliff e Manly (que ficam juntas) em dois minutos de caminhada morro abaixo. Fiquei impressionado, mas fui ver a casa. Gostei muito da casa. Cento e sessenta por um quarto só pra mim. A casa tinha muita gente morando, mas tinha uma sacada com uma vista bacana pra um parque onde dava pra ver o pôr do sol. Confirmei tudo com o cara que tava saindo da casa e fiquei de me mudar em dois dias. Mas no outro dia o cara me ligou dizendo que não ia mais dar pra eu ir pra lá porque o dono da casa não queria devolver o depósito dele e tinha começado toda uma confusão. Descobri umas histórias ruins sobre a casa e tive que acabar desistindo dela. Mas não desisti de Queenscliff. Encontrei mais alguns anúncios de lugares por lá, mas sempre que eu ligava, ou não atendiam, ou já tinham ocupado. Até que consegui três lugares ainda vagos. Marquei nos três. Vi um mais ou menos, mas bem barato. Outro começou com desculpas pra eu ver depois e então fui pro último. Tinha deixado esse por último porque achava que tinha jeito de ser o melhor deles. Pelo número do prédio parecia ficar perto da beira do morro e podia ter uma vista legal. Quando cheguei no prédio, descobri que era aquele com sacadas que eu tinha visto. Falei com o pessoal do apartamento e fiquei de me mudar no outro dia, pra não dar chance pro azar. Tive que gastar toda grana que eu tinha com o depósito, mas o aluguel é bem barato, cento e vinte por semana. Divido quarto com um paulista e no outro quarto moram um baiano e um colombiano (sempre essa Colômbia...). To me dando muito bem com todos. Descobri que no resto do prédio só moram brasileiros (o que não é bom pra treinar o inglês, mas ajuda a descobrir umas barbadas que só os brasileiros sabem). No apartamento da frente moram sete gurias, no de baixo tem quatro caras sendo que três são gaúchos. A galera do prédio ta sempre fazendo coisas junto. Saindo pra noite, indo pra praia, fazendo churrascos, ou jogando um ping-pong e ouvindo um som numa garagem que fizeram da área de lazer.



(vista da sacada do meu apartamento)

Depois de encontrar minha casa, resolvi ajeitar meus meios de comunicação. Tava querendo pegar um celular que tem aqui que se pode usar Skype. Assim poderia me comunicar com qualquer pessoa, mesmo do Brasil, de graça, em qualquer horário e em qualquer lugar. Mas pra isso precisava ou pagar caro pelo aparelho, ou fazer um plano de dois anos. Fui fazer o plano, mas pediam que eu apresentasse meu passaporte com visto de pelo menos dois anos. Tentei em todas as operadoras, mas todas pediam o visto. Então usei minhas habilidades de brasileiro para resolver problemas impossíveis de resolver. Na verdade eu só poderia fazer o plano depois de renovar meu visto para dois anos, o que eu vou fazer só em fevereiro. Mas descobri que eles pediam o passaporte como forma de identificação apenas e que não aceitavam outros documentos brasileiros. Ao mesmo tempo juntei com a informação de que existe uma carteira de identidade australiana que estrangeiros podem fazer aqui e usar no lugar do passaporte. Nessa carteira não diz até quando vai meu visto. Então fiz a carteira e usei ela pra fazer o plano de celular. Consegui o aparelho que queria de graça. Além disso economizei a grana que eu ia gastar pra comprar duas coisas que eu tava querendo, que eram uma máquina fotográfica boa e um MP3, pois o celular já vem com os dois. Tem que ver o que é o aparelho, todo com touch screen, internet (onde eu vejo o resultado dos jogos do Grêmio no intervalo do trabalho), televisão, câmera de 5 megapixels com filmadora, fora um monte de outras funções que eu nem sei usar. Além disso contratei também uma internet móvel pro meu laptop, porque assim posso usar ele em qualquer lugar (o que é uma coisa comum aqui). Nos parques, nos bares, nas ruas, no ônibus, no Ferry, em todo lugar pode-se usar um laptop com toda a tranqüilidade do mundo.

Nessa história de mudança de casa e ajeitando os meios de comunicação, acabei perdendo duas semanas de trabalho e meu dinheiro acabou de vez. Tive que voltar o foco pro trabalho e nessa última semana bati todos meus recordes. Trabalhei quatro dias seguidos, de quarta a sábado. Ao mesmo tempo consegui ir pra aula e fazer minhas coisas do dia a dia, como fazer minhas comidas, lavar roupa, e resolver algumas pequenas pendências. Rotina louca. Acordar as cinco da manhã pra pegar o ônibus as cinco e meia, chegar no trabalho as sete, sair as três e meia chegar em casa quatro e meia, tomar banho, comer e ir pra aula as cinco e meia chegar na aula as sete (sendo que ela começou as quatro e meia), sair da aula oito e meia, chegar em casa as dez, comer, conversar com o pessoal da casa e arrumar as coisas pra dormir perto da uma e acordar as cinco. Até chegar o final de semana. Essa rotina vai continuar semana que vem, mas depois to tentando conseguir um trabalho mais perto. Por enquanto, esse tá valendo, porque não é tão puxado e paga bem. O único problema é que fica longe e eu perco muito tempo indo até lá. Estou trabalhando na construção de uma casa enorme que fica na beira de um morro numa praia mais ao norte, chamada Bilgola. Eu fico no meio de um monte de concreto e aço, mas tenho uma vista paradisíaca. Enquanto corto barras de aço, quebro concreto do chão, furo parede de concreto, cavo valas num terreno inclinado, carrego pilhas de material pesado, vou ouvindo o barulho das ondas e de crianças brincando na praia. O inferno e o céu no mesmo lugar. Mas tenho que confessar que até o inferno está me agradando por aqui. O esforço é puxado, mas a recompensa é imediata.



(vista da obra em que eu trabalho)

E assim eu chego de novo no começo desse texto. Falando sobre o preço que se tem que pagar para se ter o que se quer. Uma lição que eu realmente aprendi enquanto morava em Londres. Quando pela primeira vez tive que correr sozinho atrás dos meus objetivos. Quando pela primeira vez paguei com meu suor pelas coisas que queria fazer. Essa lição eu aprendi por lá. Mas só agora consegui entender que consegui fazer tudo que fiz em Londres levado por uma força muito grande. Uma vontade de atingir meus objetivos que nunca tinha tido antes. Vontade maior até de lutar pra conseguir o que quero, do que somente conseguir o que quero. Vontade de viver intensamente cada segundo da minha vida. Viver eles plenamente, sem acomodação. E só consegui entender de onde vem essa energia agora. Lembrando da maior lição que já tive na vida. Lembrando de quando eu perdi pela primeira vez uma pessoa muito próxima, que fazia parte da minha vida de uma forma muito intensa. Um pouco antes de ir pra Londres eu perdi minha vó paterna. Me lembro que ela dizia que queria que eu fosse morar um tempo na Europa e seis meses depois da morte dela eu estava indo morar em Londres. Na época nem associei uma coisa à outra. Mas a morte dela teve um significado especial pra mim.

Quando eu era criança, tive uma fase em que me preocupava muito com a morte. Numa conversa com minha vó, disse pra ela que como provavelmente ela morreria antes de mim, queria que – se existisse alguma forma possível – ela voltasse pra se comunicar comigo e me contar como era depois de morrer. Queria saber como era a vida depois da morte. Quando ela estava no hospital, fiz uma visita pra ela que só depois eu saberia que seria a última vez que veria ela. Nessa vez, ela tinha recém melhorado de uma cirurgia delicada e eu falava com ela pela primeira vez depois da cirurgia. Realmente não sei o que me veio à cabeça, mas conversei com ela de um jeito que nunca tinha feito antes. Resolvi colocar pra fora uma idéia louca que veio na minha cabeça e disse que eu estava surpreso com ela porque eu sempre tinha visto ela como uma pessoa fraca (pois desde que eu conheci ela, ela já tinha problemas de saúde) e tinha dificuldades pra fazer muitas coisas. Mas que eu tinha ficado orgulhoso dela porque ela tinha decidido fazer a cirurgia mesmo sabendo do alto risco e do medo que ela tinha de não conseguir agüentar. Eu tinha medo de que ela não gostasse do que eu disse, mas depois que disse, ela me olhou com um imenso sorriso e disse que existia muita coisa sobre ela que eu não sabia. Não sei exatamente sobre o quê ela estava falando, mas entendi exatamente o que ela quis dizer. Essa foi pra mim a experiência mais mágica que eu já tive na vida. Com poucas frases, mas com um sorriso e um olhar profundo, conheci mais sobre a minha vó do que em todos os vinte e um anos que vivi ao lado dela. Na noite em que voltei do velório dela, dormi na casa do meu vô, junto com meu pai. Tivemos uma conversa sobre a vida que, pra mim, foi a melhor conversa que já tive com meu pai. Ambos com uma profunda consciência do valor que cada pequeno momento tem na vida. Especialmente eu e ele, que sempre moramos separados. Conversamos sobre a importância de se viver intensamente e da melhor forma possível, cada instante. Um tempo depois, estava em casa sozinho, lendo um livro do Paulo Coelho que era da minha vó. Diário de um Mago. Nesse livro, ele percorre o caminho de Santiago de Compostela junto com um guia que lhe ensina vários exercícios de auto-conhecimento. Num deles você tem que visualizar o seu próprio velório, com as pessoas chegando perto do seu caixão e olhando pra você, sem você poder fazer nada que não seja olhar e ouvir. Senti uma agonia terrível, com uma sensação de fracasso, pois via minha família e amigos olhando pra mim e conversando sobre as coisas que eu queria fazer e não tinha feito. Sobre os planos que sonhei em realizar mas não tive tempo. Queria uma chance a mais para explicar pra todos que apesar de eu não ter feito as coisas que eu sonhei, eu estava caminhando em direção delas. Tentando chegar lá da melhor maneira que eu conseguia. Mas a vontade de explicar essas coisas e não poder me deixava com um sentimento horrível. Assim que abri os olhos e terminei com o exercício, com a visão um pouco embaçada, achei ter visto o rosto de minha vó no travesseiro do meu lado. Sei que era apenas a sobra da fronha do travesseiro, mas minha cabeça me fez ver o rosto de minha vó. Alí vi que ela estava cumprindo com o trato que tínhamos feito. Ela apareceu pra mim pra me ensinar que talvez não exista nada do lado de lá e que o que importa é o lado de cá. O importante é viver cada segundo intensamente. Correr atrás dos seus sonhos com toda força possível. Acreditar em cada idéia maluca que venha a cabeça. Pagando o preço que tiver que pagar.

Toda essa lição foi muito viva comigo até Londres. Quando voltei pro Brasil, ainda sabia do valor de pagar minhas coisas com o meu suor. Mas a intensidade de cada momento parece se ofuscar aos poucos quando vivemos numa vida de rotina mais estável. A minha cidade, a minha família e a minha casa parecem me oferecer uma proteção tão grande que fazem com que eu não dê o máximo de mim a todo instante. Uma acomodação que faz com que eu deixe muita coisa passar desapercebida. Essa situação fez com que eu não estivesse plenamente presente em muitos momentos. Ainda não sei muito bem por quê. Mas o que importa é que agora consigo. Agora me sinto andando, mesmo sem saber bem pra onde. Tenho alguns planos que me parecem bem mais próximos do que antes. Acredito mais em mim e na minha capacidade de chegar onde quero. Antes achava que o problema era com os outros ou com o lugar em que eu estava. Agora entendo que era eu que não estava no meu lugar. Não estava caminhando meu caminho. Estava com medo de pular da ponte e mergulhar no meu destino. Agora aqui estou. Depois de correr. Depois de voar. Depois de mergulhar. Boiando na superfície. Aproveitando cada instante do prazer de estar superando o desafio. Chegando do outro lado do rio e me estabelecendo. Criando mais uma base. Mais um pilar. Mais uma etapa pra chegar nos meus sonhos. Atravessei o mundo porque no meu velório não vão falar do que não fiz, mas de todas as coisas que realizei.


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