quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Aprendizagem


"Ao atravessar o rio e entregar-se completamente nu ao domínio da margem à frente, ele acaba de aprender uma coisa mestiça. O outro lado, os novos costumes, uma língua estrangeira, é claro. Mas, acima disso, acaba de aprender a aprendizagem nesse meio branco que não tem sentido para encontrar todos os sentidos. No ápice do crânio, em turbilhão, se atarraxa o redemoinho da cabeleira, lugar-meio onde se integram todas as direções.
Universal significa: aquilo que, embora sendo único, verte em todos os sentidos. O infinito entra no corpo de quem, por muito tempo, atravessa um rio perigoso e largo o bastante para oferecer essas paragens distantes onde, seja qual for a direção que se adote ou se decida, a referência permanece indiferentemente afastada. Então, o solitário, vagando sem pertencer a nada, tudo pode receber e integrar: todos os sentidos se equivalem. Terá atravessado a totalidade do concreto para entrar em abstração? Perceberão os mestres que só ensinaram, no sentido pleno, aqueles aos quais contrariaram. De fato, nada aprendi sem que tenha partido, nem ensinei ninguém sem convidá-lo a deixar o ninho. Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo à parte que permanece aderente à margem do nascimento, à vizinhança do parentesco, à casa e à aldeia dos usuários, à cultura da língua e à rigidez dos hábitos. Quem não se mexe nada aprende. Sim, parte, divide-te em partes. Teus semelhantes talvez te condenem como um irmão desgarrado. Eras único e referenciado. Tornar-te-ás vários, às vezes incoerente como o universo que, no início, explodiu, diz-se, com enorme estrondo. Parte, e tudo então começa, pelo menos a tua explosão em mundos à parte. Tudo começa por este nada. Nenhum aprendizado dispensa a viagem. Sob a orientação de um guia, a educação empurra para fora. Parte, sai. Sai do ventre de tua mãe, do berço, da sombra oferecida pela casa do pai e pelas paisagens juvenis.
Ao vento, sob a chuva: do lado de fora faltam abrigos. Tuas idéias iniciais só repetem palavras antigas. Jovem: velho papagaio. Viagem das crianças, eis o sentido lato da palavra grega pedagogia. Aprender lança a errância. Explodir em pedaços para se lançar em um caminho de destino incerto exige um heroísmo que sobretudo a infância parece capaz de mostrar, embora ela deva ser seduzida para encetá-lo. Seduzir: conduzir para outro lugar. Bifurcar a direção dita natural. Nenhum gesto da mão que segura uma raquete obedece a uma atitude que o corpo tomaria espontaneamente, nenhuma palavra em inglês emana de uma forma que uma boca francesa esboçaria com facilidade, olhos bem abertos não garantem a idéia da geometria, nem o vento e os pássaros nos ensinam a música... só resta tomar o corpo, a língua ou a alma a contrapelo. Bifurcar quer dizer obrigatoriamente decidir-se por um caminho transversal que conduz a um lugar ignorado. Sobretudo: jamais tomar a estrada fácil, melhor atravessar o rio a nado. Partir. Sair. Deixar-se um dia seduzir. Tornar-se vários, desbravar o exterior, bifurca em algum lugar. Eis as três primeiras estranhezas, as três variedades de alteridade, os três primeiros modos de se expor. Porque não há aprendizado sem exposição, às vezes perigosa, ao outro. Nunca mais saberei quem sou, onde estou, de onde venho, aonde vou, por onde passar. Eu me exponho ao outro, às estranhezas. Por onde, esta é a quarta questão, colocada com novos dispêndios. O guia temporário e o mestre conhecem o lugar para onde levam o iniciado, que ainda o ignora mas a seu tempo o descobrirá."

Texto do filósofo francês Michel Serres.

Nada pra dizer... mas muito pra pensar.
E também..., muito pra fazer.

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